terça-feira, 13 de outubro de 2015

Brejo dos Crioulos, no Norte de MG, retoma mais uma área do Território Negro

Por CPT Minas Gerais 

Descaso do Governo com a luta Quilombola!

Na noite do dia 10 de outubro, os Quilombolas de Brejo dos Crioulos retomaram mais uma área do território Negro. A área "pertencia" à família dos "Clementes", um dos fazendeiros do processo de desintrusão do território. Essa área já estava na pauta com o INCRA há mais de um ano. O INCRA deveria fazer a avaliação da área para dar continuidade ao processo de regularização do território.

A morosidade deste órgão, as promessas não cumpridas de continuidade do processo e a enrolação do Governo, até mesmo para marcar uma reunião com os Negros, deixou os Quilombolas sem saída. 

Diante deste descaso por parte do Governo, os Negros mais uma vez constroem o processo autônomo de luta por territórios livres. Territórios dos Negros.

Após a 18ª Romaria das Águas e da Terra de Minas Gerais, que aprovou uma carta solicitando reunião com INCRA, depois da Mobilização da Articulação dos Povos e Comunidades Tradicionais em BSB, o povo reafirmou a sua luta.

Os Quilombolas denunciam ainda o corte de árvores nativas nas áreas das fazendas dos "Clementes".

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Violações de direitos cometidas pelo presidente da Câmara dos Deputados são denunciadas à ONU e OEA


Foto: Méle Dornelas / Articulação dos Povos e Comunidades Tradicionais 
As medidas tomadas pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, no último dia 5 de outubro serão denunciadas à Organização das Nações Unidas (ONU) e à Organização dos Estados Americanos (OEA). Protocolado nesta quinta-feira (8), o documento assinado por cerca de 50 organizações da sociedade civil evidencia que Cunha feriu ao menos cinco tratados internacionais – como a Convenção Americana de Direitos Humanos – ao trancar povos indígenas e comunidades tradicionais no plenário da Câmara e ao impedir que advogados entrassem para prestar assistência aos manifestantes e às suas lideranças.

Em protesto contra a crescente violência contra os povos e as comunidades tradicionais que vivem do campo, constatada diariamente; diante da omissão da Câmara dos Deputados e do Estado brasileiro no sentido de resolver estes conflitos, de demarcar as terras indígenas e titular as terras quilombolas;  diante da explícita opção do Estado brasileiro de defender os interesses do agronegócio e das grandes corporações; diante das diversas proposições legislativas que retiram direitos constitucionais dos povos e das comunidades tradicionais, especialmente a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que está na iminência de ser votada na Câmara dos Deputados; e diante do grande número de lideranças e membros das populações tradicionais assassinados por agentes do latifúndio, sem que estes crimes tenham sido investigados seriamente e seus autores punidos, os representantes dos povos e das comunidades tradicionais resolveram fazer uma vigília no plenário onde acontecia a audiência pública que debatia justamente a violência no campo contra essas populações. Em resposta a legítima decisão, Eduardo Cunha ordenou o fechamento das portas, o desligamento de luzes e ar-condicionados em uma sala sem janelas e acionou a  a Tropa de Choque.

Os manifestantes pacificamente reivindicavam a demarcação de terras indígenas, a titulação dos territórios quilombolas e propostas de alteração ou rejeição de propostas legislativas que violam seus direitos constitucionais à terra, ao território e à biodiversidade. Mesmo assim foram tratados de modo arbitrário e autoritário pelo presidente da “Casa do Povo”.

“Ao impedir o acesso das advogadas e advogados aos povos indígenas, quilombolas, pescadores, geraizeiros e das outras comunidades tradicionais, o presidente da Câmara dos Deputados violou um dos preceitos fundamentais da Constituição do Brasil  e de normas e tratados internacionais, a garantia do direito de acesso à justiça”, indica o documento.
 
O texto também evidencia que violações das prerrogativas de advogadas e advogados comprometidos com a defesa de direitos humanos têm ocorrido de forma constante no país.

Tal constatação está presente em dossiê elaborado pela Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares, entregue à Presidência da OAB.

Leia as denúncias entregues:

>> Denúncia encaminhada ao Relator dos Direitos Indígenas e ao Relator para Defensores de Direitos Humanos (OEA): aqui

>> Denúncia encaminhada à Relatora Especial sobre Independência dos Juízes e Advogados das Nações Unidas, ao Relator Especial de Defensores de Direitos Humanos das Nações Unidas, ao Relator Especial sobre a Proteção e Promoção do Direito à Livre Opinião e Expressão, e ao Relator sobre a Liberdade de Assembleia e de Associação: aqui

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Carta das comunidades tradicionais pesqueiras repudia ida da Pesca Artesanal para o MAPA

Com a queda do Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA), movimentos liderados por comunidades tradicionais pesqueiras divulgam carta de repúdio à ida da pesca artesanal para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). "Mudaram as perspectivas e não permitiram a consolidação das políticas impondo um retrocesso até de processos deficientes que existiam na política de pesca". Os movimentos exigem que toda a diversidade da pesca artesanal, agora, seja vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). "Não aceitaremos estarmos junto com o Agronegócio e reivindicamos que, como estava sendo planejado, que a Pesca Artesanal igualmente aos outros grupos da agricultura familiar seja alocada no Ministério do Desenvolvimento Agrário que poderá dar diferente tratamento aos pescadores artesanais pela sua atribuição e trajetória política".

Confira a carta na íntegra, clique aqui. 

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Documento político da Mobilização da Articulação dos Povos e Comunidades Tradicionais

Confira o documento político da Mobilização da Articulação dos Povos e Comunidades Tradicionais:

NÓS EXISTIMOS E ESTAMOS EM LUTANÓS 

Somos lideranças indígenas, quilombolas, geraizeras, vazanteiras, pesqueiras artesanais e de apanhadores de flores sempre viva de vários estados do Brasil. Desde 2013, nos reunimos para partilhar nossas experiências de vida e de luta. Nesta caminhada, identificamos desafios e inimigos comuns e refletimos sobre a necessidade de estabelecermos estratégias articuladas de resistência frente a tanta violência sofrida por nossos povos e comunidades tradicionais.

Nos organizamos em torno da Articulação Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e estamos em luta pela garantia de nossos territórios e em defesa do direito de continuarmos vivendo de acordo com o modo que escolhemos para viver.

Sentimos profundamente as marcas da morte produzidas pelo avanço acelerado do capitalismo sobre as fronteiras de nossos territórios e sobre nossa própria pele. Os assassinatos de nossas lideranças, as expulsões de nossos territórios sagrados e a desestruturação interna de povos e comunidades são conseqüências nefastas desse processo. Tudo isso é sustentado e potencializado por políticas estatais que privilegiam o hidro e o agronegócios, a mineração, as grandes obras de infraestrutura, sempre a serviço do grande capital. Enquanto isso, a reforma agrária, a demarcação das terras indígenas, a titulação das terras quilombolas e a regularização de territórios tradicionais são direitos cada vez mais vilipendiados pelos três poderes do Estado brasileiro.

Estamos em luta pela rejeição da PEC 215/00 e das demais proposições legislativas que tramitam no Congresso Nacional e que atacam nossos direitos fundamentais. Está muito evidente que esta PEC atende apenas a interesses privados de grandes fazendeiros e de conglomerados empresariais, inclusive multinacionais, que financiaram as campanhas milionárias de parlamentares integrantes da bancada ruralista, radical defensora da Proposta.

Estamos atentos à proximidade entre a bancada ruralista, a bancada da bala e a bancada fundamentalista religiosa nas movimentações que ocorrem na Câmara dos Deputados. Saberemos informar e alertar nossos povos e comunidades, muitas delas com presença de representação desses grupos religiosos, sobre essa proximidade e interesses comuns em votações de proposições legislativas que dizem respeito aos nossos direitos.   

Exigimos a demarcação e a proteção das terras indígenas, a titulação das terras quilombolas, a regularização dos territórios pesqueiros, de geraizeiros e demais comunidades tradicionais. O governo Dilma fez uma evidente opção pelo agronegócio, modelo baseado na grande propriedade individual, no uso intensivo de agrotóxicos em monocultivos extensivos para produção de commodities agrícolas destinadas fundamentalmente à exportação, causador de danos irreversíveis à natureza e que, em várias situações, utiliza-se de trabalho escravo. Um modelo colonizador, irresponsável e insustentável sócio ambientalmente. O avanço da mineração sobre os territórios é uma ameaça constante, que desrespeita direitos constitucionais e territoriais. A situação agrava-se quando constatamos o processo em curso de privatização das águas, materializado nos projetos de cultivos aquícolas, que desterritorializam comunidades pesqueiras.

Esta opção política do governo Dilma não lhe dá o direito de desrespeitar a Constituição brasileira e as normativas internacionais ratificadas pelo Brasil, a exemplo da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. Temos o direito aos nossos territórios livres para fazermos uso de acordo com nossos costumes e tradições. Ao contrário do que o agronegócio faz com a terra, a tratamos com cuidado e responsabilidade, para produzirmos alimentos saudáveis para nós e para as futuras gerações.

Defendemos a constitucionalidade do Decreto 4887/2013 e esperamos a derrubada da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3239 por parte do Supremo Tribunal Federal (STF). Rejeitamos a tese do “Marco Temporal” e pedimos que os Ministros do STF revertam as decisões da sua 2ª Turma, que anularam atos administrativos de demarcação das Terras Indígenas Guyraroká, Nhanderú Marangatu e Limão Verde, dos povos Guarani Kaiowá e Terena do estado do Mato Grosso do Sul e da Terra Indígena Porquinhos, do povo Canela Apanyekra, do Maranhão. Estas decisões legitimam e legalizam todos os assassinatos e atrocidades cometidas pelo Estado e por particulares contra nossos povos e comunidades até 1988. Repudiamos e exigimos a revogação do Decreto 8425, que viola os direitos culturais, dentre eles a auto-identificação das comunidades pesqueiras e de todos os povos quem tem relação com a pesca artesanal, principalmente os direitos das mulheres. Tudo isto é injusto e inaceitável. Trata-se de um verdadeiro atentado contra a história de nossos povos e comunidades e contra as nossas vidas.

Denunciamos a forte violência imposta sobre nossos povos e comunidades. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), nos últimos 10 anos povos e comunidades tradicionais enfrentaram 5.771 conflitos; 4.568 pessoas destas comunidades foram vítimas de violências; 1.064 sofreram ameaças de morte; 178 pessoas sofreram tentativas de assassinato e 98 foram assassinadas. São tamanhas a injustiça e a dor que sofremos por defendermos nossos territórios livres, que pra nós significa vida, dignidade, identidade. Ao contrário, quando nossos territórios são tomados e destruídos pra nós significa tristeza, indignação e morte.

O poder judiciário brasileiro tem perpetuando a impunidade dos assassinos de nossos líderes e esta impunidade tem retroalimentado a sanha dos mensageiros da morte. Destacamos como um caso exemplar dessa realidade a recente decisão do Tribunal de Justiça do Maranhão que não levará a júri os acusados pelo assassinato do líder quilombola Flaviano Pinto Neto em 30/10/2010 por “falta de provas”. Em homenagem e em memória aos nossos líderes, assassinados pelas forças brutas do latifúndio, exigimos justiça e punição aos responsáveis por estas mortes.

Denunciamos a sanha assassina de fazendeiros que se organizam por meio de milícias armadas e desferem ataques paramilitares contra nossos povos e comunidades. Esses ataques têm ocorrido em vários estados federados e resultado em assassinatos seletivos de nossas lideranças, além de dezenas de pessoas feridas, torturadas, despejadas. Até mesmo os casos de estupros coletivos têm sido denunciados, como é o caso das meninas quilombolas kalungas de Cavalcante, Goiás. Destacamos o genocídio em curso no Mato Grosso do Sul contra os Guarani Kaiowá, decorrentes desses ataques paramilitares e de toda a violência sofrida pela comunidade quilombola Rio dos Macacos, na Bahia e a recente violência policial sofrida por uma jovem indígena Xacriabá no Norte de Minas, enquanto denunciava a violência contra os Guarani Kaiowá no Grito dos Excluídos. Nos insurgimos, gritamos e clamamos contra essa situação desesperadora para nossos povos e vergonhosa para o Estado brasileiro. Exigimos a criação de uma CPI do Genocídio Guarani Kaiowá.

Seguiremos fortalecidos em nossas resistências. Não nos calaremos diante de todas estas injustiças e tampouco deixaremos de lutar. Exigimos nossos direitos garantidos e que nossa dignidade humana seja respeitada. Nós existimos. Estamos vivos e em luta. Juntamos as nossas forças em favor da Vida. Que o Deus da Vida abençoe a nossa caminhada.

Brasília, DF, 05 de outubro de 2015

26º Ano da Constituição Cidadã



Articulação dos Povos e Comunidades Tradicionais

Povos e comunidades tradicionais participam de Audiência Pública hoje (5), na Câmara, sobre violência no campo

Brasília – DF, 5 de outubro de 2015 – No dia em que a promulgação da Constituição Federal completa 26 anos, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados realiza, às 15h, uma Audiência Pública sobre a ação de milícias armadas a serviço de proprietários rurais contra camponeses, quilombolas, pescadores artesanais e indígenas, dentre outros povos e comunidades tradicionais, no contexto dos conflitos fundiários.

O evento contará com a participação de lideranças dos segmentos vitimizados e criminalizados pela violência no campo. Estão convidados, como expositores, membros dos movimentos de pescadores, quilombolas, indígenas e de outras comunidades tradicionais, além de representantes da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (Renap) e do Ministério Público Federal.

Segundo Fátima Barros, membro da Articulação Nacional Quilombola (ANQ), a atual conjuntura de radical avanço do agronegócio sobre os territórios tradicionalmente ocupados pelos povos e pelas comunidades exige que estes se unam para que possam resistir e garantir suas sobrevivências. “Temos inimigos comuns. Quem ataca quilombolas, ataca indígenas, ataca gerazeiros, ataca pescadores e ataca todos que estiverem sobre a terra que eles querem explorar. E os ataques têm sido cada vez mais sistemáticos, cada vez mais violentos”, lamenta ela.

De acordo com dados da violência no campo sistematizados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), nos últimos 10 anos, povos indígenas e comunidades tradicionais enfrentaram 5.771 conflitos; 4.568 pessoas foram vítimas de violência; 1.064 sofreram ameaças de morte; 178 sofreram tentativas de assassinato e 98 foram assassinadas.

No âmbito do Legislativo, dentre as várias ameaças aos povos e comunidades tradicionais, uma das mais perigosas é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que transfere do Executivo para o Legislativo a prerrogativa de demarcar terras tradicionais indígenas, titular terras quilombolas e criar unidades de conservação ambiental. Esta PEC, que explicitamente atende aos interesses da bancada ruralista e de seus financiadores, pode ser votada ainda nesta semana.


Serviço:

O quê: Audiência Pública na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM), da Câmara dos Deputados, sobre violência no campo


Quando: Hoje (5/10), às 15h


Onde: Plenário 1, Câmara dos Deputados


Mais informações, com assessoria de comunicação da Articulação dos Povos e Comunidades Tradicionais:

Cristiane Passos: 62 8111-2890
Patrícia Bonilha: 61 9979-7059
Mele Dornelas: 81 999079717



segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Terra em disputa: Os retireiros do Araguaia

Foto: Jossiney Evangelista.
 De um lado, pessoas que vivem do que a terra dá, criando gado para subsistência; do outro, gente que quer terra para juntar mais dinheiro. Entenda o que está em jogo nesta terra disputada pelos retireiros do Araguaia e pelos grileiros.

Por Lilian Brandt

No Araguaia a sazonalidade é bem marcada. Tem o tempo da seca, quando o rio forma praias, e tem o tempo das chuvas, quando o rio fica cheio. Estamos todos nos relacionando diariamente com a natureza. A mudança do clima é sentida no corpo, na rotina e na alimentação. Cada mês é um tipo de peixe diferente, uma técnica de pesca específica. Cada mês se planta ou se colhe determinada coisa. Cada época tem seu lazer: acampar nas praias, acampar nos lagos, ir para esse ou aquele retiro. Aqui, quem não tem um retiro, vai passar o final de semana no retiro do amigo.

Para quem não é da região, vale explicar: “retiro” é uma casinha simples, bem longe da cidade, nas proximidades do rio Araguaia ou de um lago que a ele se conecta. Um retiro tem piquete para tratar de uma vaquinha leiteira, curral e cisterna. Alguns poucos ainda têm galinhas, uma roça e até uma horta. Sendo assim, são chamados de “retireiros” os criadores de gado que usam as áreas de várzea do rio Araguaia durante as secas e, quando o rio sobe, retiram os animais para terras mais elevadas.

Um lugar que tenha capim verde durante a seca, provavelmente alaga durante o período da chuva. São as áreas de várzea, aqui conhecidas como “varjão”. Da mesma forma, um lugar alto, longe do risco de inundação, ideal para deixar animais na época da cheia, é um lugar onde o pasto não se mantém na época da seca. Aqui conhecemos essas áreas como “monchão”. Essa característica geográfica da região é o que faz também que a prática do arrendamento de terra para criação de gado seja tão comum.

Retiro às margens do rio. Foto: Josssiney Evangelista


Retireiros: lidando com gado em terras alagáveis


O Vale do Araguaia tem muitos retireiros, mas um grupo tem se destacado por sua luta pelo território. No município de Luciara, uma pequena cidade de 2.224 habitantes, os retireiros do Araguaia vivem da criação coletiva de gado na beira do Araguaia, numa região chamada de Mato Verdinho. Cada retireiro tem sua história. Os primeiros chegaram há mais de um século e outros foram vindo. A família de Jossiney Evangelista, por exemplo, chegou há 60 anos.

Jossiney, além de retireiro, é vereador. Ele explica que nos retiros o gado é criado solto.  São utilizadas pastagens naturais do cerrado, por isso eles conhecem diversos tipos de capins, como o palha-fina, o canarana e o cebola. Jossiney conta que “se você plantar braquiária ou outro tipo de capim, acaba mexendo com o ecossistema. Lá tem muita biodiversidade, e a vantagem é que a gente vai tentando sempre seguir a natureza”.

                                Tocando gado em terras alagáveis. Foto: Jossiney Evangelista.

Os retireiros preservam a natureza sem esforço, pois esse é o seu modo de vida há gerações. Mas tudo em volta está mudando, e esse modo de vida está cada vez mais ameaçado. A grilagem de terra é uma prática cada vez mais comum, as cercas estão aumentando e os impactos no ambiente já são sentidos. A saída encontrada pelos retireiros é a criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Mato Verdinho. A intenção é que, com a RDS, a terra continue sendo usada coletivamente, impedindo o avanço da grilagem de terra e preservando as margens do rio Araguaia.

Reserva de Desenvolvimento Sustentável – o que é e como funciona?


Até um tempo atrás se pensava que para conservar um ambiente natural era preciso tirar todas as pessoas que viviam nele. Esquecia-se que todo o território brasileiro era antes habitado pelos indígenas e que a natureza não era “intocada”, muito pelo contrário, a natureza sempre foi manejada. Percebeu-se então que, não só os índios, mas também muitas populações tradicionais desempenham um papel fundamental na proteção da natureza, bem como na manutenção da diversidade biológica.

A partir dessa percepção, se criou no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) a categoria Reserva de Desenvolvimento Sustentável, que tem como principal característica a integração de pessoas com a conservação do ambiente. É o reconhecimento do Estado de que as pessoas que viveram em determinado território desenvolveram, ao longo de gerações, uma série de conhecimentos para utilizar os recursos naturais sem esgotá-los, ou seja, de modo sustentável.
Os territórios das RDS são de domínio público, entendendo, portanto, que aquela população desempenha um papel importante para toda a nação, e por isso, tem por direito viver daquela terra. A população deve ser a responsável pela gestão da área, participando das atividades de manejo dos recursos naturais e fazendo a vigilância da reserva.

Jossiney conta que os retireiros do Araguaia entraram com o pedido da criação da RDS em 2003. De lá para cá, segundo ele, “a coisa ficou solta”. “A gente luta pela RDS para evitar a entrada do agronegócio que acaba com tudo. O modelo de agricultura que a gente vê hoje limpa a terra e tira tudo, matando muitos animais e plantas nativas”, afirma. A RDS Mato Verdinho, se criada, estaria localizada em terras alagáveis, que são Áreas de Preservação Permanente (APP).

Áreas de Preservação Permanente e o interesse da União: a Portaria da SPU


As áreas alagáveis de um rio são consideradas Áreas de Preservação Permanente (APP), que de acordo com o Código Florestal (Lei nº12.651/12) são áreas naturais intocáveis, com rígidos limites de exploração. As APPs se destinam a conservar solos e, principalmente, as matas ciliares, protegendo os rios e reservatórios de assoreamentos, garantindo a preservação da vida aquática.

Somente órgãos ambientais podem abrir exceção à restrição e autorizar o uso de uma APP (art. 8º da Lei 12.651/12). A presença dos retireiros do Araguaia nestas áreas alagáveis seria, portanto, uma exceção, só permitida porque o Estado reconhece que seu modo de vida é sustentável. Em 26 de novembro de 2014 foi publicada a Portaria nº 294 da Secretaria de Patrimônio da União (SPU), declarando as áreas de várzea do rio Araguaia como terras de interesse público da União.

O Procurador Wilson Rocha de Assis, da Procuradoria da República no Município de Barra do Garças, defende que esta é uma definição legítima. Ele afirma que “não se trata de desapropriação de terras particulares, de tomada de terra de ninguém, mas tão somente da formalização e da delimitação de uma área que por lei pertence à União e que vinha sendo ocupada de uma forma irregular, através da grilagem de terras, e invariavelmente expulsando populações que já estavam nessa região há décadas ou séculos”.

Com 1.627.686 hectares, a área indicada pela Portaria nº294 abrange os municípios mato-grossenses de Luciara, Canabrava do Norte, Novo Santo Antônio, Porto Alegre do Norte, Santa Terezinha e São Félix do Araguaia, e os municípios tocantinenses Formoso do Araguaia, Lagoa da Confusão e Pium. Apesar de ser apenas uma formalização já prevista na legislação, a iniciativa gerou polêmica e os latifundiários rapidamente se organizaram. Foram propagados rumores de que toda a área seria “Reserva Indígena” (sic), que os moradores seriam expulsos dali e que o preço das terras na região havia despencado.

No dia 30 de janeiro de 2015, a Portaria nº 294/2014 foi revogada, sendo substituída pela Portaria nº10/2015, que instituiu um Grupo de Trabalho para realizar um estudo técnico das áreas então desapropriadas a que fazia referência, a fim de analisar sua situação fundiária.

Com a regularização fundiária na região, os grileiros, aqueles que se apropriaram ilegalmente de grandes áreas de terras devolutas através de documentos falsos, teriam suas fazendas passíveis de desapropriação. A grilagem de terras geralmente é feita para a aquisição de financiamentos bancários dando a terra como garantia. Os produtores de soja estariam também interessados em adquirir quotas de Reserva Legal, já que o novo Código Florestal permite que sejam compradas reservas fora da propriedade na qual ocorre o desmatamento, desde que seja no mesmo bioma.

Com a expansão do agronegócio na região, as terras estão cada vez mais valorizadas. A regularização fundiária, prevista na Portaria nº294/2015, impediria a compra e venda das áreas de várzea do Araguaia, e este é o maior temor dos poderosos da região. Já os posseiros, pessoas que se apropriam de terra para morar e trabalhar, não seriam prejudicados. Do mesmo modo, estariam resguardados os direitos das comunidades tradicionais que ali vivem, como pescadores, os indígenas Kanela do Araguaia e os retireiros do Araguaia.

Para Jossiney, a população urbana de Luciara também se beneficiaria com a preservação da área, pois, segundo ele, a maioria dos moradores são ribeirinhos, vivem da pesca. “A criação da RDS é uma forma de conservar esse modo de vida. A fiscalização poderia diminuir ou até extinguir a prática da pesca predatória, porque a gente só respeita um local se tem alguém”. E completa, “Se tem uma casa de ‘fulano de tal’, eu não vou entrar. Mas se continuar do jeito que está, não tem sentido a gente ficar lá dentro. O retireiro sem a natureza preservada nem vale a pena”.

Quem tem medo da regularização fundiária? O latifúndio, a mentira e a violência


Não é novidade: a grilagem corre solta no Araguaia. O interesse pelas terras é tanto que a violência se torna uma prática comum na busca de mais lucro. Luciara viveu dias violentos em 2013, com diversos atentados cometidos contra os retireiros do Araguaia. Foram queimadas duas casas, tentaram atear fogo em um veículo, pneus foram queimados em frente a residências e foram proferidas ameaças de morte contra diversos membros da comunidade.

A casa de uma liderança religiosa que apoia a causa dos retireiros foi alvejada por tiros e um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) foi ameaçado e impedido de entrar na cidade. A MT-100, único acesso terrestre à Luciara foi obstruída, máquinas foram colocadas na pista de pouso do aeroporto e até mesmo o acesso ao lago e beira de rio onde ficam os retireiros foi fechado.

Jossiney era o proprietário de uma das casas queimadas. Dois anos após o crime, ele ainda não superou os momentos de horror. “Até hoje eu lembro do pessoal querendo me linchar, foi muito violento. Eu sou representante do povo, sou vereador, mas muitas vezes eu deixo de ir em algum lugar para resguardar minha vida. Agora que eu estou voltando ao meu retiro normalmente, agora que eu estou conseguindo refazer a casa”, desabafa.

Casa de Jossiney após incêndio criminoso. Foto: Jossiney Evangelista.


Para ele, a situação permanece tensa, ainda que as ameaças sejam veladas. “Não tem ameaças diretas, mas a posição de quem é contra continua sendo a mesma. O silencio é pior, porque você não sabe quem é a pessoa que vai fazer alguma coisa ruim”, afirma. Ele defende que a criação da RDS é a única saída para os retireiros. “Todo mundo tem o direito de ser contra ou a favor, mas qual é a proposta que eles tem? É só ser contra e pronto? Se houvesse outra alternativa para a gente manter nosso modo de vida, eu iria abraçar a causa”, afirma o vereador.

Em maio de 2014, oito integrantes da Associação dos Produtores Rurais (Aprorurais) de Luciara foram denunciados pelo Ministério Público Federal de Barra do Garças pelos crimes de associação criminosa, sequestro, cárcere privado e ameaça contra a comunidade tradicional retireiros do Araguaia, professores e estudantes da UFMT. A investigação, conduzida pela polícia e pelo Ministério Público Federal, comprovou que as manifestações contra a comunidade tradicional da região do rio Araguaia foram orquestrados, coordenados, financiados e estimulados pela associação criminosa da qual fazem parte os denunciados.

De acordo com o Procurador Wilson Rocha de Assis, o grupo usava a desinformação e controle político para tentar colocar a população da cidade contra os retireiros. “Esses setores têm afirmado que é um ato de desapropriação, que o poder público vai tomar as áreas e vai expulsar as pessoas que residem na região, o que não é verdade, especialmente considerando que é uma região que tem uma ocupação antiga. A boa fé dessas pessoas tem que ser contemplada na medida que a lei autorize”, afirmou.

Mesmo sendo mentira, a maioria do povo acreditou. Segundo Jossiney, esta campanha de desinformação enfraqueceu a luta pelo território. “Pregaram um terrorismo na cabeça das pessoas com informação falsa. Eu sou o único vereador que apoia a criação da RDS, os outros são declarados contra e até o prefeito se declara contra”, lamentou.

Cercas de arame e limitações políticas


No dia 17 de agosto de 2015, uma audiência pública realizada na Assembleia Legislativa de Mato Grosso, em Cuiabá, debateu sobre as Portarias nº 10/2015 e nº 294/2014 da SPU. De acordo com o Procurador Wilson, este foi um momento de democratização do debate. Segundo ele, “o Ministério Público e a SPU foram muito acusados de não estarem ouvindo outros setores, especialmente o setor produtivo. Agora esse argumento não pode mais ser usado. O debate foi praticamente dominado pelo setor ruralista, que está muito bem representado na Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso”.

Não podia ser diferente. A Audiência Pública foi realizada pela Comissão de Agropecuária, Desenvolvimento Florestal e Agrário e Regulamentação Fundiária, e contou com a presença de Sindicatos Rurais dos municípios afetados, prefeitos, vereadores e apenas um representante indígena e um retireiro. “O que a gente ouviu foi a oposição desses setores em garantir os direitos das comunidades tradicionais e dos povos indígenas”, disse o Procurador. “Apesar dessa oposição, a gente conseguiu explicar a legislação, que favorece os povos indígenas e as comunidades tradicionais. O Ministério Público e a SPU deram todos os esclarecimentos que foram solicitados”, afirmou Wilson.

A recomendação do Ministério Público é que se faça primeiro a regularização dos territórios dos povos indígenas e das comunidades tradicionais. A prioridade dada aos povos indígenas e comunidades tradicionais não parte de um interesse ideológico. De acordo com o Procurador Wilson, “a lei que estabelece como se faz regularização fundiária na Amazônia Legal, a Constituição e os tratados internacionais deixam clara a necessidade de respeitar as comunidades tradicionais”. Ele ainda afirma: “eu não posso ser avesso à propriedade privada ou ao agronegócio, mas o que a gente defende é que seja observada essa ordem, primeiro a garantia dos territórios tradicionais e depois as propriedades privadas”.

Enquanto agem nas esferas de decisões políticas, os fazendeiros também intervêm na área reivindicada pelos retireiros. O procurador afirma que o Ministério Público tem recebido diversos relatos sobre novas cercas e atos de invasão de terras públicas. “Estamos tomando todas as providências para que esses atos sejam processados e punidos na forma da lei.”, garante.

Após anos de luta, Jossiney começa a perder as esperanças. “Já tem mais de dez anos que a gente vem esperando acontecer a RDS e nada. O poder de articulação dos fazendeiros é grande. Sempre o mais fraco é o que termina perdendo”, lamenta.

O medo também afeta a esperança. Após as ameaças e cenas de terror vividas, Jossiney teme pelo futuro. “Não é só aqui na região, em vários lugares quem lutou por uma causa acabou morrendo e só viu as coisas acontecendo depois da morte. Eu queria ver em vida”, desabafa. “A gente só tem uma vida. Quem vivencia uma cena de terror, mesmo depois de algum tempo, as imagens não se apagam da mente. A gente pode se acostumar, mas não quer mais vivenciar aquilo”, conclui.A regularização fundiária é o caminho para construir a segurança jurídica na região e, consequentemente, a segurança das pessoas que lutam pelo direito legítimo ao território.